Vozeirões

Em julho de 99 quando eu selecionava candidatos para o meu curso de dublagem, um jovem de 19 anos me impressionou, por sua voz profundamente grave. Sua leitura claudicante esbarrou num obstáculo maior que a vontade de fazer o curso: a interpretação. O nervosismo sempre atrapalha bons candidatos nessa hora. Fico muito atento a esse detalhe para não eliminar a chance de um bom candidato, principalmente se vejo nele vontade de aprender. Mas o caminho desse jovem era longo demais. Sua desolação não foi maior que a minha porque ali ao meu lado, diante do microfone estava uma voz de que a dublagem precisa, e muito. A voz grave bem modulada, de homens e mulheres adultos de qualquer faixa etária, dificilmente aparece no mercado de dublagem. Ela é muito necessária também ao mercado de gravações comerciais para rádio, TV, cinema, narração de documentários e ultimamente um mercado em rápida expansão: o de CD- Rom.

O advento da FMs desmitificou os locutores de vozeirão impostado. Eram essas vozes que davam personalidade às emissoras e produtos até o final da década de 60. As emissoras de FM, com equipamentos sensíveis, moldou a voz que é padrão hoje em todo o território nacional: informal, descontraída. O comunicador de FM é o "amigo do ouvinte".

E onde fica o locutor nato, de voz grave como o jovem do início deste texto? As agências de propaganda, produtoras de áudio e vídeo, editoras e gravadoras passaram a investir em vozes que interpretem ao invés de impor. Sugerindo, não vendendo. Persuadindo com um sorriso em cada palavra, quase sussurrando. Mas para falar assim é preciso saber interpretar, controlar a projeção vocal, articular bem. E praticar muito.

Atualmente só resta uma escola para quem acredita no seu potencial e na sua voz: a dublagem que, pela natureza diversa do trabalho, acaba por moldar no candidato diversos tons de voz que ele nem imagina que tenha. Infelizmente muitas pessoas que desistem quando são informadas de que não poderão trabalhar nas empresas de dublagem sem o registro profissional da carteira de trabalho, podem estar perdendo ótimas oportunidades. Freqüentemente filmes e desenhos animados exibem tipos maus, violentos, misteriosos, grandalhões, autoritários, fortes, heróicos, dublados por vozes inadequadas. Incompetência de quem escalou? Talvez. Mas ao escolher a voz apropriada para aquela personagem o diretor escalou a voz "A" que já estava escalada em outro filme, em outra empresa. Chamou a voz "B", idem, na terceira negativa, pressionado pelo tempo e a pressa do cliente, escala quem estiver disponível. Daí a quantidade de dublagens equivocadas, isto sem mencionar a escandalosa invasão de filmes dublados em território americano por brasileiros em situação irregular. Prestem atenção nos filmes e documentários exibidos pelo canal People and Arts.

E, se o assunto é talento, vale lembrar um fato curioso e ao mesmo tempo lamentável acontecido durante um workshop sobre "DUBLAGEM, SUA HISTÓRIA E SUAS VOZES FAMOSAS NO MERCADO PUBLICITÁRIO, em Belo Horizonte no mês de maio de 99: direcionado a estudantes de teatro, comunicação, atores, locutores e comunicadores, o evento, muito divulgado pela mídia local, atraiu o interesse de um homem de 40 anos. Ele pediu para dublar algumas cenas escolhidas para ilustrar a palestra. Foi o melhor momento de todo o workshop. Ele sincronizava os movimentos labiais com incrível facilidade, fazendo as reações e tons de voz como no original. Nos personagens maus criou uma voz fantasmagórica impressionante. Foi aplaudido em delírio. Quando terminou o workshop, consegui me desvencilhar do tumulto natural de um evento desses para correr atrás daquele ator maravilhoso, que tinha nos divertido tanto, sugerindo a ele que viesse para o Rio ou São Paulo, etc, etc, etc. No meu entusiasmo não havia percebido seu olhar consternado. Num fio de voz, esclareceu que este era um sonho antigo que jamais seria realizado. Sua instrução era primária. Sua profissão; moto-boy, casado, vários filhos. A vida não lhe daria essa alternativa. Parecia que eu tinha levado uma punhalada.

Evoquei essa história triste para lançar uma advertência aos que se sentem atraídos pela minha profissão: acreditam em sua vocação? Ótimo. Já é um ponto de partida. Mas invistam na especialização. Falar, entender e escrever inglês é de grande ajuda. Leiam muito. Em silêncio, em voz alta, não importa; leiam sempre. Esta é a única escola formadora dos bons profissionais da comunicação. As empresas do ramo se modernizam investindo em equipamentos de última geração. O profissional da voz tem que seguir esta tendência. Finalizando, reproduzo a parte final de uma crônica de Bárbara Heliodora, publicada no Globo em setembro de 99 sob o título: A FALTA DE INTIMIDADE COM SUA PRÓPRIA ARTE. " ... é preciso que os novos atores, para conseguir exercer a profissão, se apresentem prontos para serem dirigidos, não ensinados, na hora de interpretar, a fim de poderem candidatarem-se com melhores condições do que os penetras de boa aparência O ator é um instrumento de si mesmo, e ele tem de aprender a dominar e tocar seu instrumento."

Márcio Seixas, titular do Dublanews, Curso de Formação e Aperfeiçoamento de Dubladores, tem presença na Internet no site http://www.dublanews.art.br . Sua voz pode ser ouvida em http://www.essavoz.art.br/marcio.seixas/index.html